Ana Achcar: a pedagogia do jogo das máscaras
Intervenção oral na banca online de Ana Lúcia Martins Soares, em arte Ana Achcar, para progressão de professora titular Escola de Teatro da UNI-RIO Praia Vermelha, Rio de Janeiro.
“A máscara é uma ferramenta magistral. Ela obriga imediatamente o ator a dar à verdade uma forma, a obedecer, a ceder a esse outro alguém, esse ser que ele veste no rosto e cuja alma ele acolhe. A máscara é uma bruxa que modela o corpo dos atores como se fosse argila”.
Ariane Mnouchkine. A arte do presente. Entrevista com Fabienne Pascaud. Trad. Gregório Duvivier. Rio de Janeiro: Cobogó, 2011, p. 141.
A colega Ana Achcar escolheu nos submeter um memorial reflexivo sobre sua trajetória como docente universitária. O teor desse memorial vai bem além do relato do caminho percorrido por uma servidora pública federal, docente universitária, como a Ana.
Esse relato expressa a narrativa personalizada de uma memória afetiva, que ao mesmo tempo não deixa de ser emotiva, as lembranças seletivas que conformam o que Ana é nesse momento presente, pois amanhã já será diferente.
Ana nos oferece a expressão das suas memórias, como ela mesmo menciona um pouco aterrorizada, confessa na p. 54 do seu Memorial.
“Escrevi sim, na ordem que fui lembrando, mas por força das articulações entre os acontecimentos e ações, os contextos e a obrigatoriedade de mínima coerência nas reflexões, temi pelo pior”.
Ao contrário não há nada a temer. Só o melhor!
Naturalmente, preocupada com o juízo que essas memórias possam reverberar sobre dela, ela ressalta a incompletude “na arrumação deste armário de guardados”. Ana nos abriu as portas e as gavetas do seu “armário de guardados” teatrais.
Todos temos os nossos “armários de guardados”.
E quem melhor do que Tchekhov para nos associar armários, memórias pessoais e coletivas e sugerir uma reflexão sobre a própria memória, quando faz seu personagem realizar um patético discurso no Jardim das cerejeiras dirigindo-se ao centenário armário, do quarto das crianças....
“Gaiev – Querido velho e estimado armário! Estou diante de você, profundamente comovido. Você, que há um século está a serviço dos ideais resplandecentes do bem e da verdade! O seu chamado silencioso para o trabalho frutífero não perdeu a força ao longo de cem anos, e durante gerações manteve viva nossa crença num futuro melhor e na vitória dos nobres ideais humanos”. (Anton Tchékhov. Teatro II. Trad. G. Aranyi. Veredas, 1998, pp. 78-79).
A fala como disse tem um “que” de patético, mas traz na sua notável ambiguidade a própria memória, e se no lugar de “armário” colocássemos “teatro”, teremos aí um belo resumo da função social do próprio teatro. E no caso de Ana essa função social estaria fortemente associada à sua trajetória pedagógica.
Dito isso, para brevemente compartilhar com os senhores e dar uma ideia dessa tentativa de resumo de uma densa e intensa carreira de 30 anos dedicada à universidade, observo que a redação do memorial é subdividida em cerca de 40 subtítulos. Esses tópicos não evoluem cronologicamente, nem são capazes de esgotar essa biografia profissional, tratando cada um de um assunto específico, ensejando a abordagem de diferentes momentos, temas, pessoas e questões que se associam pelas tramas dessas extensas ramas.
Nessas 55 páginas, Ana procura descrever e examinar a extensão da sua trajetória acadêmica. Não deixa de ser uma tentativa de “passar a limpo” essa mesma trajetória, desde sua iniciação teatral, sua formação universitária, passando pelo seu processo de aperfeiçoamento artístico e acadêmico, nas suas incursões no mestrado e doutorado, etapas fundamentais que potencializaram o seu trabalho como docente-artista universitária.
Soma-se a esse percurso, aquele outro dedicado ao seu próprio trabalho profissional, associado também às atividades de extensão que Ana desempenha atualmente a frente da coordenação do Projeto de Extensão do Núcleo do Ator: investigação e documentação teatral; e do Programa Interdisciplinar de Formação, Ação e Pesquisa Enfermaria do Riso.
Ana se graduou em 1984, ela é da primeira turma formada na recém reformada instalação que abrigaria a Escola de Teatro, transferida para Praia Vermelha, depois do incêndio do Prédio da UNE.
Passados dez anos, logo Ana já integrava o quadro de professores dessa mesma Escola.
Ao nos apresentar seu conjunto de aprendizagens e realizações no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão, sem desprezar a gestão e a administração institucional, Ana integra, repito, um período de 30 anos de atividades acadêmicas.
Um primeiro aspecto que chamou minha atenção, na leitura do Memorial, foi que esses 40 e tantos subtítulos exprimem aspectos tanto objetivos, quanto subjetivos.
Objetivos como datas, relatórios, conteúdos programáticos, perfis possíveis para o estabelecimento de uma pedagogia da máscara ou do jogo do palhaço, horas, partidas e chegadas em diversos continentes do planeta, a lista de artigos e obras escritas ou organizadas; mas também conteúdos como dizia subjetivos, que vão do “aroma amadeirado” do elevador do prédio da Escola de Teatro (Memorial, p. 05), passando pelo episódio da “palhaça proibida e do médico ofendido na enfermaria do Instituto Fernandes Figueira” (Memorial, p. 10). Ou ainda o episódio em que Ana acompanha a palhaça Josette Giraffe/Caroline Simons no hospital francês e fica tão dividida quanto angustiada e aflita ao seguir a história da criança “J”. Outro momento emblemático é o da viagem iniciática guiada pelo ator griot Sotigui Kouyaté, bem como as descrições e análises assimilativas dos processos de trabalho associados ao Théâtre du Soleil.
Enfim, são abundantes esses momentos que estou chamando de subjetivos dentro do relato. Relato esse que inclusive, como já disse, se apresenta insuficiente para conter em suas páginas tudo que atravessou o corpo poético de Ana e vem conformando sua memória teatral.
Um corpo poético que foi se formado e sendo moldado, primeiro por papeis escriturados, um corpo poético que encontra nos papéis mascarados o espaço para um aperfeiçoamento na investigação de si e do outro. Este foi o lugar desde onde, Ana acabou construindo sua prática pedagógica.
Na minha opinião, seu relato Ana, trata do corpo em busca da sua arte poética. Seria isso a sugestão do “côncavo e do convexo”?
Um corpo, que com o tempo, deixou-se preencher por esta memória teatral, naturalmente individual, sua, particular, mas que em certos aspectos é passível de ilustrar inclusive uma memória teatral coletiva, uma trajetória geracional.
Outro leitor terá outros pontos de contato, outras coincidências... Eu tenho pelo menos três pontos notáveis de contato com seu percurso — a querida Da. Slava (Predislava Voronoff ou Slava Goulenko) na Ilha do Governador; o saudoso Dácio Lima pelas cenas do Rio de Janeiro, que orientou minha ida para Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq e o intrépido Ami Hattab, nosso conhecido de Paris, meu colega nesta escola lá pelos anos 1990.
Um segundo aspecto que também chamou minha atenção, ao longo do relato de Ana foi a sua generosidade. Aquilo que ela estuda, assimila ou intui, ou apreende em relação ao teatro, em particular no tocante ao trabalho de atuação com máscaras ou na pele da Palhaça, ela compartilha com seus alunos, seus orientandos e aqueles que estão por perto. Uma verdadeira pedagogia do “dom”, “oferecer e receber”, pois como ela mesmo escreve nunca deixa de estar aprendendo com seus alunos.
Naturalmente, esta atitude é um belo reflexo das suas habilidades como boleira, pois quem faz um bolo certamente o faz para ser compartilhado e apreciado por quem está ao seu redor. Ninguém acende o candeeiro para coloca-lo debaixo da mesa.
Um terceiro aspecto que retomo foi essa dificuldade diante de “como compartilhar conosco essa memória pessoal”. Uma memória que é física cuja tensão ela nos apresenta com a metáfora do jogo da máscara, que segundo uma de suas mestras é portadora de uma atuação “ao mesmo tempo côncava e convexa”. O que seria isso? Ser côncava e convexa?
Mas a complexidade reside em se narrar nesses diversos encontros...
Apostar em encontros transformadores com outras pessoas e neste caso também artistas que nos provocam à mudança. Como contar, compartilhar, comunicar... partilhar cada uma dessas vozes passageiras, desses sujeitos e os vestígios dessas convergências.
Como se percebe, Ana fez “Encontros com homens e mulheres notáveis”, nos diz Peter Brook desde o título do seu filme. Mas como somos uma geração que vivemos os anos 80 e 90 (já lembrava Ângela na sessão preparatória), vivíamos, alguns de nós, sob o brilho das luzes das “Noites Cariocas”, aquelas lá do Morro da Urca. Assim, sem querer ser saudosista demais, talvez o mais acertado fosse evocar os versos do conhecido roqueiro, que diz que “quando um certo alguém / cruzou o teu caminho / e te mudou a direção / é melhor não resistir / e se entregar...
E foi isso que você fez. Você se entregou ao teatro e vem desde então construindo a sua passagem pelos mais diferentes palcos.
Quando nos iniciamos na prática teatral e ganhamos alguma consciência sobre esse ofício, se procuramos nele nos aperfeiçoar, constatamos que essa prática é tão breve quanto sinuosamente infinita.
É um ofício feito de caminhos sedutores e atalhos precipitados. Viver nessa geografia teatral pode se tornar arriscado e perigoso. Mas é bom e prazeroso. Porém, podemos também sucumbir, como sucumbem os personagens de Tchékhov, Trepliov e Nina. Cada um deles sofre, à sua maneira, os designíos do próprio teatro.
Porém, quando encontramos as pessoas certas, quando atendemos ao chamado desses encontros notáveis que podem nos mudar a direção, somos capazes de enfim enfrentar o destino. Somos recompensados.
Vir a ser aquela que estávamos predestinada a ser por nós mesmas.
No seu relato, Ana, fica evidente o processo de se tornar aquilo que não se sabia que era, pois estava oculto pelo tempo que viria fazer o seu trabalho. Faltava esse conjunto de ações, situações, encontros e realizações que você percorreu e que agora, aparentemente “de longe” você contabiliza, refletindo sobre ele.
Há um aspecto último que gostaria de enfatizar.
É o “fazer com as mãos”. Você menciona na p. 13 do seu Memorial quando relembra sua participação na Oficina de Confecção de Máscaras de Donato Sartori que não tem nenhuma habilidade com as mãos “salvo na cozinha”.
Enfatizo esse “fazer com as mãos”, porque nosso professor (não sei se você teve aulas com ele) Hélio Eichbauer reiterava. Sempre que algum aluno dizia que não sabia desenhar, Hélio reafirmava ser fundamental para o ator, que soubesse realizar alguma coisa com as mãos. De fato, nem todos temos essas habilidades, é preciso muito trabalho mesmo a título introdutório para confeccionar uma máscara de couro.
Na sua opinião, qual seria o papel das mãos no jogo das máscaras? Como as “mãos” devem se comportar? Com sua experiência você se deparou com algum tipo de linguagem estruturada ou orientações específicas para o emprego da mão no trabalho da meia mascara ou das mascaras de um modo geral?
Quem trabalha com o jogo das máscaras, você nos lembra, diferente dos papéis escriturados são convocados a engajar o corpo inteiro a serviço desse papel mascarado, cujo olhar sobre o mundo reflete um presente eterno de passados possíveis.
Um outro ponto que gostaria de lhe ouvir seria sobre a “pedagogia da cópia”. Eu intuo o que você está sugerindo com essa nova investigação, que nasceu nas proximidades do Théâtre du Soleil e vem se materializando no seu projeto de pós-doutorado. Intuo que seja uma espécie de dinâmica de trabalho criativo, onde ninguém seria proprietário da sua criação, estando assim todos sujeitos a serem “copiados” e “reciclados”, uns pelos outros. Uns e outros vão se aproveitando dos trabalhos individuais em nome do coletivo. Você poderia falar um pouquinho sobre isso?
Finalmente, só me resta agradecer mais uma vez a oportunidade de compartilhar com você deste momento. Eu que estive na plateia universitária a assistir sua sonambula Madame Clessi, as travessuras das duas viúvas do defunto e sua destacada presença no Auto do Frade, bem como a ocasião de apreciar sua dissertação de mestrado sobre o jogo da máscara.
Meus parabéns por essa trajetória tão extensa quanto densa e que o “frio na barriga”, propiciado pelo Último Carro, continue inspirando você na continuidade das suas atividades.
O Teatro te agradece!
Walter Lima Torres Neto
Curitiba, 20 de setembro de 2023.